O Alienista
By Machado de Assis and Sérgio Rossi
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About this ebook
A história ocorre em uma pequena cidade. O consagrado médico Simão Bacamarte, famoso na Europa, resolve abrir um consultório em Itaguaí, município da região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro. Futuramente ele abri um manicômio, a famosa Casa Verde, na cidade, para os seus estudos de psiquiatria. Com o tempo Simão começa a ver loucura em diversos moradores da região e arredores e, forçadamente os interna como loucos. Na mesma época o médico pensa em se casar com a viúva Evarista por achar que ela seria uma boa parteira, pois seu interesse não é o amor e sim ter filhos.
O povo da região começa a ter medo de sair às ruas, pois a qualquer momento poderia ser jugado como louco por Bacamarte, logo começa uma inquietação por parte dos moradores da cidade e, assim, inicia-se a chamada Revolta dos Canjicas, liderada pelo barbeiro da cidade, cujo apelido era Canjica. Entretanto, o médico a princípio se mantém indiferente aos protestos a frente da Casa Verde. Porfírio, cidadão que cobiçava cargos políticos, resolve chamar Bacamarte para uma conversa, o que acaba em um acordo bom para ambos.
O tempo passa e as internações só aumentam. Bacamarte chega a ponto de internar sua esposa, Evarista, com a intenção de afastá-la. Novos internados chegam a casa, o político Galvão, entre outros cidadãos de bem da cidade. Mais da metade da cidade encontra-se internada, o desespero toma conta daquela sociedade.
João Pina, outro babeiro da cidade, consegue o afastamento de Canjica da Revolta e assim, toda luta para destruir a Casa Verde, parece ser em vão. Porém, com o passar do tempo, o próprio Bacamarte percebe que existem erros em sua teoria e liberta todos os internados. Sua conturbada mente agora aponta a loucura ao próprio Simão Bacamarte, que passa a viver trancafiado na Casa Verde e lá morre após 17 meses
Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro, 21 de junho de 1839 Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1908) foi um escritor brasileiro, considerado por muitos críticos, estudiosos, escritores e leitores o maior nome da literatura brasileira.
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O Alienista - Machado de Assis
CAPÍTULO I
De como Itaguaí ganhou uma casa de Orates
O_Alienista_p2-6As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e da Espanha. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.
‒ A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos, casou com Dona Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que Dona Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas, ‒ únicas dignas da preocupação de um sábio, Dona Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
Dona Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regime alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, ‒ explicável, mas inqualificável, ‒ devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes.
Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, ‒ o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de louros imarcescíveis
, ‒ expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.
‒ A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.
‒ Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é arguida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A ideia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.
– Olhe, Dona Evarista, disse-lhe o Padre Lopes, vigário do lugar, veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.
Dona Evarista ficou aterrada, foi ter com o marido, disse-lhe: "que estava com desejos", um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intenção da esposa e redarguiu-lhe sorrindo para que não tivesse medo. Dali foi à Câmara, onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloquência, que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento dos doidos pobres. A matéria do imposto não foi fácil achá-la; tudo estava tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostões à Câmara, repetindo-se tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do falecimento e a da última bênção na sepultura. O escrivão perdeu-se nos cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores, que não acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivão de um trabalho inútil.
‒ Os cálculos não são precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte não arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa.