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A Colheita
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A Colheita

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About this ebook

Num futuro não tão distante, uma Corporação, combinando governo e negócios, vai governar os Estados Unidos. Comida, abrigo e, acima de tudo, saúde, serão priorizados enquanto uma classe Corporativa de elite se ergue novamente, atrás da máscara da "felicidade e oportunidade universais". Muita riqueza será investida na produção de vaccos, humanos vivos conhecidos como "cadáveres Corporativos": criados em ranchos isolados como fontes para transplantes de órgãos e tecidos. Drogados com "euforizantes”, os vaccos passarão pela "colheita" de órgãos já destinados a uma lista de pacientes em espera.

Um de tais vaccos, a "propriedade" bastante valiosa Hart256043, vai escapar. Em um bar secreto especializado em sexo e drogas ilícitas, ele conhece Edgar Devereaux, um designer de sucesso e filho adotivo de Joshua Devereaux, um membro do conselho Corporativo. Mas Edgar tem um segredo: ele nasceu como Chris Turner, um renegado da classe mais baixa—e ele nunca consegue se afastar de suas origens ou do desejo de sentir novamente o gosto de sua juventude selvagem. Chris e Hart se ligarão. Descobrirão, um com o outro, o que é compaixão, realização, e uma completude fora dos limites da vida Corporativa. Edgar vai rejeitar o estilo de vida de Joshua, e se unirá a Hart para fazer qualquer coisa—incluindo matar—para garantir a sobreviência de Hart. E Hart, um dos personagens mais simpáticos a aparecer na ficção contemporânea, vai encontrar em Chris Turner a humanidade da qual ele precisa para sobreviver.

LanguagePortuguês
PublisherBadPress
Release dateJan 17, 2019
ISBN9781547565672
A Colheita
Author

Perry Brass

Poet, novelist, and gay activist, Perry Brass has published 15 books including erotic classics like Mirage, Angel Lust, The Substance of God, and Carnal Sacraments, as well as How to Survive Your Own Gay Life. He’s been a finalist 6 times for Lambda Literary Awards, and won two IPPY Awards from Independent Publisher. As an activist, he joined the Gay Liberation Front in 1969, right after Stonewall, and became an editor of Come Out!, the world’s first gay liberation newspaper. His newest book is The Manly Art of Seduction, How to Meet, Talk To, and Become Intimate with Anyone.

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    A Colheita - Perry Brass

    A Colheita

    um romance por Perry Brass

    Belhue Press

    Este é um trabalho de ficção; qualquer material envolvido com ele é completamente fictício. Toda semelhança com qualquer pessoa, viva ou morta, é apenas coincidência e não-intencional.

    Para todos os vaccos* do mundo, do passado e do presente, que cederam suas vidas escravizados pela Corp**, ou Corporação, em todas as suas formas traiçoeiras—dez, doze, catorze horas por dia—e que não perceberam que esta é a única vida que terão, os únicos filhos que terão (sem se importar com a forma que nossos filhos tenham); o único mundo em que eles viverão. Para eles eu digo: que a Deidade[1] esteja com vocês, e faça brilhar a merecida luz sobre vocês. E para Terry e Jay, para Nancy, Eric B., Mimi, e Sal, e sempre para Hugh.

    Também gostaria de agradecer aos vários livreiros e distribuidores que tornaram os livros da Belhue Press alguns dos mais distribuídos e disponíveis por aí, e para os meus leitores que se prenderam a mim na aventura desta história maravilhosa—nossas próprias histórias—que estamos contando. E, claro, a todos os meus irmãos e irmãs lidando com o HIV, com a solidão e o medo.

    *Pronuncia-se váco, vácos.

    **Pronuncia-se Córp

    Outros livros de Perry Brass:

    ––––––––

    Sex-charge (poesia)

    Mirage, um romance de ficção científica.

    Works and Other ‘Smoky George’ Stories

    Circles, continuação de Mirage.

    Out There: Stories of Private Desires. Horror. And the Afterlife.

    Albert or The Book Of Man, terceiro livro da série Mirage.

    Works and Other ‘Smoky George’ Stories, Edição expandida.

    Acabando Davi de falar com Saul, a alma de Jônatas ligou-se com a alma de Davi; e Jônatas o amou como à sua própria alma. E desde aquele dia Saul o reteve, não lhe permitindo voltar para a casa de seu pai. Então Jônatas fez um pacto com Davi, porque o amava como à sua própria vida. E Jônatas se despojou da capa que vestia, e a deu a Davi, como também a sua armadura, e até mesmo a sua espada, o seu arco e o seu cinto. E saía Davi aonde quer que Saul o enviasse, e era sempre bem-sucedido; e Saul o pôs sobre a gente de guerra, e isso pareceu bem aos olhos de todo o povo, e até aos olhos dos servos de Saul.

    1 Samuel 18:1-5

    A Colheita

    Prólogo

    Ele finalmente é meu. Não posso expressar a alegria que isso me traz. A sublimidade disso: que cada órgão em seu corpo, que pertenceria a outra pessoa, agora pertence a mim. Que ele está deitado ao meu lado, respirando, e agora me espera com seu corpo bruto, rígido, peludo, cheio de pele áspera e músculo, e um tipo de doçura e masculinidade de sonho, que escapa à maior parte da apreciação humana. Quero lamber sua garganta sem acordá-lo, e então beijar seus dedos dos pés, cheios de calos, e me mover suas coxas peludas até chegar até ao seu sexo entumescido, que aguarda, preparado, como uma concha marítima tirada do oceano, tremendo. Posso senti-lo contra meus dedos, a cada inspiração profunda e batida estrondosa de seu coração. A casa ao meu redor agora me parece boa. Antes era apenas o local onde eu trabalhava. Tão boa quanto possível, sozinha no interior, onde eu gosto de ficar. Há próximo um belo lago de águas frescas e árvores acolhedoras, e agora a minha pequena casa me satisfaz de uma forma que não fazia antes: antes dele buscar dentro de mim e dali tirar algo que estava escondido havia anos, desde quando eu fugi para me tornar alguém que não era eu. Mas ele buscou e encontrou, no meu âmago, nas minhas costas e coração. O poder disto. O poder dele. Que ele pôde fazer isso e, ao mesmo tempo, me agitar com pena—que eu o abrigaria, o salvaria, o abraçaria para escondê-lo daqueles que o matariam... se ele ao menos soubesse disso, mas agora ele está adormecido.

    Eu escorreguei ao lado dele e enterrei meu rosto nos pelos grossos de seu tórax; denso, bruto, incontrolável como os juncos siltosos silvando ao redor do meu lago. Mas salgado; ele parece emitir sal. Como se houvesse algum tipo de desequilíbrio primitivo nele, e todas as partes de seu corpo eliminam esse elemento. Eu beijei e lambi seus mamilos carnudos, firmes com os de um jovem gorila solteiro. Eles se renderam à minha língua e à gentil exploração dos meus dentes. Ele soltou um gemido de prazer sublime e onírico. Ele está exausto por causa de tudo que aconteceu, tenho certeza. Queria poder dormir como ele. Aonde ele vai em seus sonhos? Será possível ele ir tão longe que eu não possa nunca mais recuperá-lo? Acaricio suas coxas duras de neandertal, e então sua barriga. As coxas parecem invulneráveis; duras como couro. Mas seu estômago parece não ter músculos: como a barriga macia de uma grávida. Coloco minha bochecha ali e sinto a delicadeza de sua pele, tão fina quanto a membrana de um balão de criança.

    Então eu percebo que sua barriga havia sido aberta diversas vezes. E depois, fechada e costurada, ou colada com químicos agressivos. Um amontoado de linhas, como em um mapa, está à mostra, em cumes azuis e cicatrizes. Meus dedos seguem as linhas. Estou grato que ele não esteja ali: escondido em seu refúgio sabe-se-lá-onde.

    Eles fariam isso com você? Eu me pergunto, e toco sua fina e pálida pele. Há um pequeno abajur ao lado da minha cama, emitindo tão pouca luz quanto uma vela. Eu o ligo, e então miro de forma que seu halo de luminosidade não atinja o rosto dele. Ali, acima de umbigo afundado, mas antes que seus grossos pelos do peito comecem, eu vejo. Está legível. Roxo escuro. O tipo de tatuagem que você usaria para marcar uma vaca, a orelha de um cão, ou qualquer objeto que possuísse. Ela claramente o marca com o nome que deram para ele: HART256043.

    Capítulo Um

    Para minha mente cansada, a noite da cidade parecia sem fim, deserta, e inteiramente negra. Era mais irritante que nunca, provavelmente porque eu tinha ficado longe por mais de duas semanas e havia esquecido da sua giganteza: a forma que ela me desgastava, a forma que ela me lembrava de certas peças do meu passado que eu odiava. Eu dirigi em silêncio em direção à saída oeste, onde as ameaçadoras torres da Corporação e seus parques planejados abriam espaço para blocos irregulares de estruturas de serviço, lojas atarracadas que vendiam um self-service ruim, e então filas de lojas de descontos duvidosos, a maioria deles quase ilegais. A Corp permitia que elas existissem aqui, nos limiares sujos da cidade. Do lado de fora das lojas estavam pilhas de lixo; sempre um sinal de problema à vista, já que a Corp insistia que todos os negócios fossem mantidos imaculados.

    Passei por diversos amontoados de imigrantes negociando tarde da noite. Eles encararam meu belo carro esportivo verde, e então desviaram o olhar. Estavam estranhamente vestidos em roupas sujas e manchadas. Pareciam cansados, prontos para recolher suas coisas e irem para casa. Poucas luzes, parecendo olhos cautelosos, me observavam pelos lados. No momento eu não queria pensar sobre as luzes nem nada: era a razão de eu dirigir tão tarde.

    Finalmente, eu cheguei à água e parei meu carro em um estacionamento comercial noturno. Não era tão bem protegido quanto eu gostaria, mas me deu um sentimento de segurança; já havia coisas suficientes sobre as quais me preocupar, não podia ficar inquieto por causa do Jaguar XK8, de dois lugares, que eu adoro e acho irado. Esse carro é um objeto do meu amor puro. Foi refeito com os refinamentos modernos como auto-direção (quando eu quero), segurança para radar, e controle de combustível sintético; mas ainda assim ele é muito retrô, com um rico acabamento em goma-laca jade feito à mão e detalhes iguais a maçanetas esculpidas, que convidam os suaves toques de dedos; luzes torneadas à mão, e o interior de nogueira lisa realçando dois bancos de couro macio e cinza. Estando ali dentro, eu sentia um triunfo conquistado com dificuldade (mas merecido); me fazia esquecer de muitas coisas. E lembrar de outras.

    Lembrar: quem pensaria que, em algum momento, eu teria algo tão luxurioso quanto isto? Ou que eu comandaria minha vida? E esquecer: esquecer por um momento o preço constante que eu tinha que pagar por essa vida; ou que, quando era criança, carros eram coisas que eu costumava roubar. Eu não me inquietava com eles; eu apenas roubava-os. Mas nenhum deles era assim elegantemente bonito. Nada chegava perto desse XK8. No geral, roubar carros era por impulso. Não conseguia controlar. Quando pegava, eu o levava para o interior, dava umas voltas, e naqueles momentos—talvez por umas duas horas, por aí— me sentia incrível (maneiro, como os jovens dizem). Sentia que eu, Chris Turner, pertencia àquele local. Eu era foda pra caralho, não era só o carro. Então, quando a emoção acabava, eu abandonava o carro, como um sexo usado, e andava pela mata até poder subir no trem de volta para a cidade. Era isso: puro e simples passeio juvenil, era só isso. Eu não podia vendê-los ou tirar as partes; seria muita loucura. Eu seria pego em um segundo. Algumas vezes eu levava amigos comigo. Eu era rápido e isso os impressionava. Todos nós éramos fodidos, os maus elementos recalcitrantes de qualquer escola. Apenas garotos da Rua do Fracasso e dos projetos de abrigo, felizes como rãs se déssemos a sorte de comer um cachorro-quente de rua (pães amanhecidos, cebolas gordurosas jogadas por cima), e eu já era um esquisitão pra eles. Provavelmente um jovem chupador de rolas em treinamento. Então o que me restava? Tinha de fazer alguma coisa.

    Mas em geral eu fazia isso sozinho e para mim mesmo. Só pela doce emoção. E-scape. Ser outra pessoa por algumas horas. No carro de alguém. Nunca recebi um centavo pelos carros e provavelmente a maioria deles voltou para seus verdadeiros donos, a menos que outros ladrões os tenham pegado, e aí, já não era meu problema. Acredite, eu tinha outros problemas. Algumas vezes, por uns trocados, eu atendia homens mais velhos; mas isso é uma outra história, e também não tenho orgulho dela. Eu os encontrava em parques, ou vagando pelos corredores no fundo das casas de jogos ou lojas de desconto. Velhas bostas solitárias, eles me levavam para seus quartos e me chupavam pelo preço do almoço ou pelo dinheiro do jogo. O tipo de coisa que garotos pobres e loucos como eu queriam. Mas era a minha vida naquela época: décadas atrás. Eu tinha outro nome naquela época. Só pensar sobre isso era como cortar o dedo: me faz estremecer. É doloroso ter esse tipo de vida velha e bruta te perseguindo, coisa que ela faz às vezes; como se estivesse na próxima esquina. É quase como se minha velha vida estivesse se esgueirando até algum belo carro que (no presente) pode ser meu: então eu tenho que prestar atenção. Tenho que estar em guarda o tempo todo. Eu tenho que garantir que minha vida antiga não apodere-se nem desse Jaguar verde que eu amo, ou da bela e rica vida com a qual eu agora me deleito. Parece complicado? É sim: claro. Mas é assim que são as coisas comigo—ou não são. Os são/não são, é/não é se revezam o tempo todo, como as luzes mesmerizantes de uma boate. Pouco é de fato como na história em que eu conto. Eu só não queria que meu Jaguar antigo terminasse como um dos meus velhos carros emprestados: abandonado como se fosse algum velho e confuso felador após o sexo. Esperando ser encontrado por sabe-se-lá-o-que. Ou por mim, tentando achar meu caminho de volta para ele.

    Por aqui havia muitas crianças como aquela que eu costumava ser, e eu não queria nenhuma delas dando um passeio no carro de Edgar Devereaux. O funcionário do estacionamento, um Tipo C de natureza doce e esperta, me entregou um tíquete. Ele era jovem e robusto, com vincos cinzas e marcados pelo suor em seu grosso pescoço rosa. Ele tinha dóceis olhinhos de leitão. Se ele fosse enchido com algodão e coberto de veludo, ele seria um tesouro. Eu havia estacionado no mesmo estacionamento antes, e ele me chamou de Sr. Stevens. Stevens é uma identidade extra que eu tenho; vem a calhar ter uma dessas. Às vezes, eu apresento um RG de Stevens, que eu mandei fazer há anos. O documento está completo em todos os sentidos, com uma foto e todos os códigos necessários: só que usa o nome Stevens, que sempre me soou como um nome bastante legítimo. Por um segundo, eu não respondi. Acho que a longo prazo isso é um bom sinal; então eu sorri rapidamente e o deixei para trás. Eu me distanciei enquanto ele acenava adeus com ambas as mãos. Adeus, Sr. Stevens, ele disse em uma voz aguda que parecia com o som que seria feito por um dos três porquinhos. Eu me virei, acenei de volta, e então comecei a assobiar.

    Uma velha canção estava rodando pela minha cabeça. Era de alguém chamado Cole Porter, que havia sido famoso um século atrás. Chama-se My Heart Belongs To Daddy[2], e parecia ter muito a dizer sobre mim. Talvez tudo. Joshua Devereaux, meu pai, a escuta o tempo todo em seu sistema de som. Joshua tem música em milhares de formatos e algumas coisas são tão velhas que ninguém as ouve, exceto uns poucos indivíduos especializados—é como Joshua os chama. Assim como meu Jaguar verde, tudo de Joshua tem aquela qualidade retrô: aquela qualidade de qualidade que Joshua sabe como conduzir com maestria. Joshua pode conduzir tal qualidade (e todo o poder que vem com ela) muito melhor do que eu um dia serei capaz de conduzir meu XK8. Com frequência, o carro parece apenas com um brinquedo que me foi dado. Quero dizer, eu, Edgar Devereaux, o conquistei, cada maldito centavo dele, mas sem Joshua—Papai—haveria pouquíssimo da categoria do XK8 para mim. Então o meu coração pertence ao Papai, assim como, de forma menos direta, este Jaguar. Sabe (um segredo sombrio e profundo vai ser revelado agora): sem o velho Joshua, eu ainda estaria me virando, apenas um vadio de rua crescido chamado Chris Turner, se vendendo para homens velhos por algumas pratas.

    As pessoas sempre se fascinam com Joshua, principalmente porque ele nasceu abastado e ninguém parece imune à fascinação—ou intoxicação—pela fortuna herdada. Por abastado, eu não quero que você acredite que Joshua só tenha bastante dinheiro. Ele está anos-luz de distância da categoria confortável e com dinheiro: Tudo bem, filho, só pegue mais uma salsicha!. Joshua, apesar de suas ocasionais incursões ao preço baixo, é realmente rico. A profundidade e a largura de sua fortuna ainda me desconserta. Ele é, resumidamente, aquilo que os pobres se contentam em chamar de rico pra porra ainda que os ricos tenham (ou finjam ter) aversão à bagunça que a imagem evoca. Dinheiro e poder estão no sangue de Joshua. Algumas vezes, eu acho que mesmo em seu velho e aguado gozo, isto é, nos se/quando ele consegue colocar em ação aquela linguiça careca e não-circuncidada. Os ricos da geração dele nunca cortavam nada; eles precisavam de tudo intacto. Se o pior acontecesse, você sempre poderia esconder os seus diamantes no prepúcio, caso venha a Revolução.

    Apesar de eu viver já por muito tempo com os ricos, ainda é difícil para mim imaginar como seria nascer deste jeito. Ricos sem perguntas; ricos sem problemas. Rico sem se preocupar sobre ser rico. Eu nasci numa das classes mais baixas (certo, na mais baixa), então você entende que o Joshua não é meu verdadeiro pai. Assim, atualmente, ainda que meu coração (e todas as outras partes que funcionam) pertençam ao Papai, nesta noite escura, inexplicavelmente quente do início do outono, eu estava me esgueirando por aí de uma maneira que definitivamente não pertencia a ele.

    Mas Joshua nunca estava longe de meus pensamentos. Ele havia crescido um pouco em torno da cintura, com uma pequena papada, mas ele ainda transpirava elegância para mim. Ninguém consegue vestir um terno branco de verão como Joshua, ou te chamar do outro lado da sala usando um timbre de voz que parece adicionar um pouco de polimento em cada móvel pelo caminho do som. Ou, em um nível mais prático, a forma que ele podia balançar seu fino cabelo branco-prateado e mirar seu distinto nariz fino para cima, só um pouco, meros dois graus—no máximo; mas o que tais dois graus diziam, você sabia: você sentia. Algumas vezes eu pensava que ele não conseguia se conter. Suas reações (a opinião firme, o esnobismo), foram cultivadas dentro dele. Claro que eu odiava: aquela qualidade requintada que nunca se ergueu além de um certo tom patrício, mas que podia te congelar e matar ali mesmo. Lixar todos os seus pontos mais sensíveis; te apertar como um pedaço de gengibre. Joshua Devereaux podia me machucar mais com a elegância da sua desaprovação do que o meu pai verdadeiro, Steve Turner, podia com o couro de seu cinto barato. Eu sentia cada segundo daqueles momentos. A dor. O saber de que eu era apenas um impostor na casa gigante de Joshua, que eu jamais de fato pertenceria àquele local. Mas não se engane: eu tenho fortes sentimentos por Joshua. Eles estão selado hermeticamente como um relógio suíço de ouro, cheio de afeto e amor. Maravilhamento e medo. Pena, lealdade e respeito. Mas o problema é saber quando é que cada sentimento está em ação.

    While teeing[3] off a game of golf, I might make a play for the caddy,[4] ainda assobiando ("but when I do/ I don’t follow through, ‘cause my heart belongs to Daddy![5]"), deambulei para fora do estacionamento e cuidadosamente atravessei umaa velha e desgastada ponte de ferro para pedestres, coberta de erva daninha. A ponte cantava enferrujada a cada passo. Era o único barulho que eu ouvia sobre o som distante do tráfego da cidade. Parei de assobiar. Ninguém mais usava a ponte, mas cruzá-la me fez sentir divergente (e mais novo). Logo eu estava na extremidade mais alta de uma estreita ilha no rio, cercado por trilhos ferroviários desusados: eu definitivamente estava do lado errado dos trilhos. Com frequência, neste lugar, eu pensava em voltar correndo para a cidade: escondendo minhas pegadas, e então indo rápido de volta para Joshua. A maioria das pessoas decentes considera a ilha além dos limites. Era perigoso e baixo. Por séculos, as formas de vida mais baixas e sem reputação se congregaram ali,  à medida que os usos e abusos desse pequeno pedaço de terra mudavam. A maioria das pessoas sentia como se não houvesse como dizer o que acontecia nestas pequenas praias arenosas e  decadentes e nos bunkers militares desocupados e meio subterrâneos por ali encontrados. Mas eu sabia.

    Eu me ajeitei sob as profundas copas das árvores. Por um momento, elas bloquearam minha visão da cidade, e eu fiquei em adorável escuridão e silêncio; silêncio tal que me faria falta dentro de pouco tempo. Então eu ouvi algo rondando por entre as árvores. Automaticamente, eu fiquei tenso. Poderia ser a polícia. Uma gangue de crianças (. . . as crianças erradas). Até mesmo um grande cão vagante. Nada vi. E então o som leve e quase imperceptível parou. Poucas pessoas ainda usavam esse caminho em direção aos bares do outro lado da Ilha Polkville, e se o faziam, eu não estava certo sobre o quanto eu gostaria de conhecê-los. Era possível ser roubado, mas com alguma sorte, também era possível conseguir sexo bom, rápido e prazeroso. Mas no momento, tais situações meramente pareciam os lados de uma velha moeda. Eu me esgueirei para fora da sombra das árvores. Meus olhos percorreram a extensão da praia poluída, até que eles se acostumaram com a pouca luz refletida pela lâmina prateada da lua crescente, duramente malhada pelas nuvens escuras que flutuavam. O barulho recomeçou. Algo estava se movendo, mas indeciso, como se tentasse descobrir seu caminho em minha direção. Eu me virei, voltando com pressa para as sombras, longe da areia. Agachando, eu me escondi atrás de uma torreta baixa de um dos bunkers de concreto, que ali estavam guardando a praia como se fossem ossos pré-históricos.

    Anos antes, quando eu era muito mais jovem, há tanto tempo que eu tinha doze ou treze anos, eu usava os bunkers para fins sexuais. Isso os deu um contexto pessoal que nunca mudaria; simplesmente estar perto já era um ato carregado de erotismo Inicialmente, era só diversão inocente. Apenas exploração com garotos da minha idade. Um pouco mais tarde, era com homens mais velhos que me davam dinheiro ali, se eu os deixasse se divertir comigo. Nunca ganhei muito dinheiro, porque eu aproveitava a situação quase tanto quanto eles. Talvez as coisas fossem mais fáceis naquela época, ou talvez eu apenas fosse um garoto idiota—mais verde e mais tolo, mas a ilha praticamente não me ameaçava e estar nela nunca me incomodou muito. Nos tempos passados, esse monte de terra protegia a cidade de seus inimigos externos, que nunca nem se aproximaram. Mas agora ele tinha se rendido a outros inimigos, presas com as quais a polícia da Corp não estava feliz. Como atualmente o frete era feito em túneis através do país, os trilhos estavam mortos: apenas ratos e gatos ferozes se moviam por ali. Eu mesmo me sentia feroz o suficiente, brincando de me esconder da lua. Havia um bunker maior que no passado me era especialmente querido ao me esconder com parceiros de sexo em potencial (uma variação interessante do velho jogo de infância: eu chamava nossas escapadas de Esconde-e-come!). Eu me apressei, dobrado, em direção a ele, e em silêncio, quase sem respirar, me adiantei escada abaixo, por um meio lance de degraus de cimento pedregoso.

    Eu espiei o lado de fora, silencioso, então sorri. Três homens parecendo inocentes o suficiente, todos bastante débeis e drogados, mas bem-vestidos (provavelmente, observando suas roupas, supus que eram viados funcionários dos níveis mais baixos da Corp), andando pela praia, tecendo pequenos círculos um em torno do outro. Poderia ser uma dança cortês; assim como eu o estava havia pouco, eles assobiavam, até mesmo faziam algo parecido com canto. Decidi deixá-los marchar em direção aos bares e relaxar. Logo estavam longe da minha visão. Saí do posicionamento estratégico no bunker e continuei.

    Sentia-me mais leve. Um sorriso me perpassou, ainda que o ar ainda fosse reconhecível com o da cidade. Ele carregava um cheiro particular: algo como querosene, misturado com plástico chamuscado e lufadas aéreas de esgoto, que coçavam o nariz. O odor me lembrou de minha velha e distante infância: de uísque bruto de favela; nicotina; caspa; e tônico capilar barato com cheiro de lavanda. E também: sopa gordurosa e enlatada, bebida direto da embalagem, e banheiros com encanamentos cagados; e homens velhos com encanamentos igualmente cagados (tantos peidos de chili com carne enlatado!) e pés com fungos. Em resumo, o tipo de gente que nunca trocava meias e roupas de baixo com a frequência necessária. Os odores me lembraram dessas coisas. Na infância, eles misteriosamente apareciam como meus tios; tinha certeza de que eles nunca me aprovaram, nem ao meu pai Steve. Tenho vagas memórias do meu vovô, Ralph Turner, um velho grande e idiota, e uma multidão de outros velhos imbecis, outros tios, alguns nem mesmo parentes eram, todos eles se apertando na fedorenta sala da frente de nosso apartamento minúsculo depois que Mamãe foi embora. Papai tinha saído mais tarde, depois de se embebedar, e disse a Ralph, que veio como um rei vagabundo com uma comitiva de desleixados. Ah, eles estavam preocupados com razão, mas não a maior parte da preocupação para si mesmos até que o velho Turner aconselhou de forma régia, "Se ‘cê tivesse dado praquela vadia esnobe o que ela precisava Eu lembro as palavras exatas, mas o que ele queria dizer com precisava"? Estava ele falando sobre amor? Ou outra coisa mais concreta que, naquele momento, eu não podia entender?

    Eu era minúsculo naquela época, tinha oito, e fiquei de lado. Sentia-me idiota; rejeitado: Mamãe tinha me abandonado também. Eu não havia sido um bom menino o suficiente? Ou, talvez nem mesmo um menino o suficiente? Todos os meninos se perguntam isso. (Talvez seja isso que os faça meninos.) Então eu fui até Steve e ele começou a babar, resmungar e chorar; algo que eu nunca tinha visto Papai fazendo. Então ele vomitou algo verde no chão. Era horrível. Só aumentava o cheiro abjeto. Então, quando ele se reestabeleceu, ele olhou para o velho e disse, Por que você não para de se meter no que não é chamado?

    Pouco tempo depois disso, todos os tios sujos e Vovô Ralph saíram ao mesmo tempo. Eu nunca tinha visto um homem Turner chorar; eu não podia nem mesmo imaginar Steve fazendo isso. Acho que do jeito particular deles, os homens velhos ficaram enjoados com a cena. Se Steve tivesse permanecido empedernido, tudo teria sido diferente. Eles não se importariam com ele vomitando. Bêbados vomitam. Teriam até mesmo o respeitado, ainda que ele tivesse se casado com uma vadia esnobe. Mas não o choro; você não deixava que uma menina partisse seu coração daquela maneira. Nenhuma mulher devia valer essa pena. Eu lembrava de Steve ficando bebaço, me espancando de raiva, até mesmo espancando Sandra, minha mãe, enquanto ela ainda estava conosco. Mas nunca chorando.

    Ele parou de chorar depois disso.

    Eu lembrava principalmente aquela sala da frente, e a noite na Ilha Polkville a trouxe de volta pra mim. A forma que ela fedia depois que os tios lá estiveram: como minhas cuecas de algodão fedidas, quando a pilha de roupas para lavar ficavam maiores do que eu, e eu não as trocava por quase uma semana: tinha aquela mancha amarronzada onde ficava minha linda bundinha. Também dava para sentir o cheiro de urina seca nas calças na sala, por causa dos tios, e claro, o tônico capilar deles. E eles falavam daquele jeito engraçado e deseducado que eu tenho certeza que eu também usava antes de começar a ouvir Joshua Devereaux. A cada palavra perfeita que ele usava; e antes de que eu começasse a falar igual a ele, o tanto quanto me era possível.

    Ainda que nós estivéssemos de fato a uma pequena distância da cidade, a Corporação havia praticamente abandonado a Ilha Polkville. Isso aumentava o fascínio dela para mim, além de seu terreno limitado. Exceto quando a noite a cobria e apenas o rio e o céu escuros eram vistos, havia pouca beleza restando ali. Seu litoral pedregoso, que podem ter sido amáveis no passado, estava permeado com bunkers, vidro quebrado e montes de lixo. Mas o sentimento de liberdade se derretia em mim como a melhor das manteigas. Finalmente foi solto, com toda a sua nudez crua e selvagem. Só de estar lá, eu finalmente me sentia desacorrentado: liberto de todas as ansiedades sobre mim mesmo. Era como se eu, de repente, tivesse sido possuído por outro corpo, e estava dentro dele—naquele corpo—sem nada para me impedir. Tinha certeza de que ninguém estava atrás ou na frente de mim: depois de toda a tensão sob a qual havia estado, o sentimento correu para minha cabeça; e com rapidez eu tirei todas as minhas roupas. Comecei a correr pelado em direção à água prateada pela lua. O ar atingiu meu peito e minhas costas e parecia me beijar, mesmo com a imundície da cidade em sua respiração. Meu pênis livre começou a pular para cima e para baixo, meio duro, e eu sorri. Deidade! Porque naquele momento, valia a pena: o caminho até ali. As mentiras contadas a Joshua. Fingir. Senti-me envolvido em minha própria vasta insanidade e comecei a me tocar, a empurrar a sensação com mais afinco pelos meus órgãos sexuais e me energizar arrebatadoramente com aquilo, deixar-me ser possuído pela sensualidade proibida de estar ali.

    Eu não ia fazer mais nada, não tinha intenção de atingir o clímax ali mesmo, mas meu pinto, ingurgitado e pulsante no ar úmido da noite, estava vivo. Não há nada como atos sexuais em público, mesmo que você esteja sozinho. De repente, eu me senti verdadeiramente jovem, livre e indisciplinado novamente. Era exatamente como eu havia querido me sentir durante o caminho para onde eu precisava ir. Estava aliviado e pronto para perambular pelado pela praia, correr até o rio e me perder por um momento nas águas rasas próximos à areia.

    Areia molhada e áspera se esmagou por entre meus dedos do pé. Um pouco do rio lambeu-me até a altura da batata da perna, e então eu percebi—muito estupidamente—que eu não estava sozinho. Aquele som horrível retornou. Alguém se aproximava. Meu corpo ficou tenso: eu congelei. O sentimento de criança livre que eu tivera. . . morrera.

    Um policial da Corp podia estar à solta. Talvez fosse só outro cara, perambulando por Polkville em busca de sexo. Mas nu em pelo, eu não me arriscaria, mesmo em um sortudo encontro improvisado com um estranho. Corri de volta para as sombras do velho bunker, chutando meu dedão contra uma pedra, enquanto uma figura apareceu repentinamente. Em um instante, eu parei e o encarei.

    Mesmo na fraca luz da lua, vestindo um velho e

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